sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Mangue Beat: Batida Pós-Anos 90...

Devido ao falecimento de Chico Science, a banda Nação Zumbi passou um bom tempo com seus tambores silenciados, a cena existente na cidade sentiu o baque do acontecimento. Entretanto, a vida não para e além de Chico, outras pessoas tocavam a “Cultura Mangue” em frente. No ano de 1998, a Nação Zumbi resolve retomar seus trabalhos, lançando um disco duplo intitulado Dia & Noite, o 1º CD vinha com 5 (cinco) músicas inéditas, 8 (oito) faixas ao vivo (ainda com Science nos vocais) e uma regravação da música Samba Makossa, feita pela banda Planet Hemp. No ano seguinte a turma da Nação Zumbi e da Devotos resolve encabeçar um projeto cultural batizado de “Acorda Povo” (1999-2000), com incentivo do poder publico, levaram shows e disponibilizam oficinas de música, moda, reciclagem, grafite, fotografia e pintura, além de propiciarem debates sob inúmeras temáticas sociais, levando assim dignidade, informação e cidadania para bairros periféricos. Em 2002, surge a rádio Alto Falante, rádio essa de cunho comunitário e localizada no bairro carente do Auto José do pinho. Foi desse bairro periférico recifense que saíram bandas como Devotos, Faces do subúrbio e Matalamamão. Enquanto isso em Florianópolis-SC entrava em evidência uma cena musical inspirada na cena Mangue. Chamada de “Mané Beat” (Mané em alusão aos ilhéus daquela região). Fizeram parte desse novo movimento cultural as bandas: Iriê, Primavera dos Dentes, Rococó, Stonkas y Kongas, Phynky Buddha, dazanha e Tijuqueira. Somando assim 7 (sete) no total. Por lá, a notabilidade do “novo som” não chegou a muitas bocas, mas ocorreu e isso é fato. Tanto é que como trabalho final de conclusão de curso em psicologia social surge o documentário: Sete mares numa Ilha: A Mediação do Trabalho Acústico na Construção da Identidade Coletiva. Tese essa defendida por Kátia Maheirie no ano de 2001.

Em meados dos anos 90, quando a cena explodiu, A imprensa e os produtores musicais juntamente com promotores de eventos se apropriaram do gênero Mangue para consolidação de um publico alvo, os jovens de classe médio-baixa, entretanto o movimento alcançou classes sociais mais elevadas, já que segundo Marcos Napolitano “A música brasileira moderna é, em parte, o produto desta apropriação e desse encontro de classes e grupos socioculturais heterogêneos” (2002: 48). Duas revistas virtuais são criadas com a temática Mangue: Virtual Manguenius e Manguetronic.zip.net. Alguns festivais na cidade cresciam e outros surgiam (Abril Pro Rock, PE no Rock, Soul do Mangue e Rec Beat). Economicamente o Mangue Beat foi rentável para suas gravadoras, rentável a certo ponto, já que a internet se popularizou e “engoliu” todos os gêneros musicais de A a Z e praticamente resumiram  as vendagens de discos em números mínimos e nos dias atuais nos limitamos a encontrá-los nos respectivos shows, ou seja, o que vemos hoje são gravadoras quebradas e bandas cada vez mais “independentes”, que gravam, distribuem e vendem seus próprios discos.

Vejo que a sonoridade Mangue Beat ainda se encontra viva, porém não mais atuante tanto quanto seu conceito. Como é um termo abrangente (musicalmente falando), se torna muito vaga à idéia do que possa vir a ser ou não Mangue Beat. Mas, seu conceito de ecologia e ação social que se distribui nas letras das músicas, cenas do cinema ou nos materiais reciclados das esculturas, quadros e roupas, está cada vez mais vigente, diria até que tal preocupação aumentou, já que apesar da tentativa de conscientização humanitária dos Malungos, a situação não apresenta um quadro evolutivo nesses últimos anos. As pessoas e as empresas continuam despejando seus dejetos nas margens dos rios, aterrando os manguezais, explorando o economicamente mais fraco e socialmente mais carente. Apesar dos pesares, o reconhecimento da contribuição que Chico e o Mangue Beat deram para as cidades do Recife e Olinda não se resume em batismos de túneis, praças e mangues (apesar de haver) com o nome Chico Science. Em 24 de Abril de 2009 foi inaugurado na casa 21 do Pátio de São Pedro o Memorial Chico Science, o espaço consiste em três ambientes; informativo, imersivo e educativo. No primeiro, uma exposição (Imaginário Chico) e tem como curadora Maria Eduarda Belém (a “Risoflora”). Na segunda sala um tocador de MP3 que muda de música a cada movimentação dos visitantes, é uma sala interativa. O terceiro e ultimo ambiente é destinado a eventos e/ou oficinas. No local também se encontra uma pequena biblioteca, vídeos, computadores e uma discoteca virtual com a temática Mangue. O projeto custou R$ 305.000 para os cofres da prefeitura do Recife. Com o passar do tempo veio o reconhecimento por parte dos poderes públicos e finalmente em 20 de Agosto do mesmo ano (2009), o movimento Mangue Beat a partir de então, se tornou Patrimônio Cultural e Imaterial de Pernambuco. O projeto de lei foi elaborado pelo deputado Sérgio Leite (PT) e publicado no Diário Oficial do Estado.

Sendo assim, o Mangue Beat tem (oficialmente) sua contribuição para a transformação cultural da cidade e para o fomento de uma música pop local reconhecidos e respeitados. Portanto, o que podemos notar é que, a cena Mangue não apenas se fez presente nos espaços da terceira margem dos rios, locais que não se encontravam ocupados pelos feudos culturais hegemônicos, como também se fez presente nos condomínios e apartamentos dos bairros nobres. Na década de 90 o “Pop Nordestino” representado pelo Mangue Beat em Pernambuco fez ferver não só a música como também a moda, o cinema, o teatro, a fotografia e as artes plásticas em termos gerais.

Mangue Beat X Armorial

Existem algumas diferenças entre a cena Mangue e a cena Armorial. Enquanto o movimento Armorial prega uma cultura “essencialmente” nordestina através de raízes ibéricas e mouras vindas através das navegações coloniais, o Mangue Beat usa as raízes da Risophora Mangle para absorver tanto a cultura local quanto a cultura pop global, ou seja, enquanto o Armorial se preocupava em “retornar” a idade média, o Mangue Beat tem como objetivo não só o “resgate” das tradições como também a expansão psicodélica que vai do rock setentista até o que há de mais novo no mundo musico-tecnológico, como sintetizadores e pedais de efeito. A intenção do Mangue desde o principio é misturar a pluralidade dos ritmos e dos signos. “Modernizar o passado, é uma evolução musical” (Chico Science – Banditismo por uma questão de classe). Podemos notar que apesar da contemporaneidade o Armorial e o Mangue em quase nada convergem, exceto a preocupação com o campo cultural local, no caso o nordeste brasileiro e mais especificamente, a cidade do Recife.

Em encontro com Chico Science, Ariano Suassuna questionou o porquê do Science, já que Chico é um nome bem popular no nordeste e Science é um adjetivo de língua estrangeira, no caso a inglesa. Porém a implicância de Ariano durou pouco tempo, pois no desenrolar da conversa, Suassuna reconheceu a importância do Mangue Beat ao falar que se não fosse ele (o Mangue Beat) a juventude talvez nunca prestasse atenção ao Maracatu Rural. Sendo assim, podemos concluir que, apesar de contemporâneos, o Mangue Bit e o Armorial são antagônicos, pois, enquanto um prega a diversidade adicionando elementos estrangeiristas, o outro defende a idéia de monocultura cultural. Os Mangue boys, costumavam dizer que de monocultura já bastava a da cana-de-açúcar. Por outro lado, Antônio Carlos Nobrega dizia que: “O movimento Armorial deu dignidade a cultura popular nordestina”. Assim como o Mangue Beat, o Armorial se faz presente na atualidade, um dos grandes divulgadores desse segmento é o próprio Antônio Nobrega com seu teatro brincante em São Paulo, serve de incentivo para expansão da cultura Armorial e popular.

Perfil de Malungo:

Alguns elementos de identidade cultural foram instituídos para que se consolidasse a nova “tribo urbana” dos Mangue boys. Signos estes diluídos nas formas de vestir e na maneira de falar. As roupas de chita (tecido barato e florido muito comum na região nordeste) misturados, por exemplo, a tênis Adidas é um exemplo de mescla cultural. O chapéu de palha (outrora usados pelos cortadores de cana) e os colares de circuitos de computador também formam um bom exemplo de mistura entre tradição e tecnologia. As gírias também são um caso a parte. Nas “tribos urbanas”, temos como elemento de identidade cultural o vocabulário enriquecido com palavras especificas que são compreendidas e faladas apenas por aqueles do grupo em questão. Os Mangue boys dispunham do seu próprio dialeto. Entre algumas palavras as mais faladas são: Malungo, que significa companheiro; Macô, Saudação de chegada; Risoflora, moça bonita; Saúdo de Aratu, quando o sujeito se encontra com pouco dinheiro e Ficar no Caritó, quando o individuo ficava muito tempo solteiro (a).

Todos estes elementos de identidades culturais serviram para transformar sujeitos, assim como também formar opiniões. Foi graças ao jeito Malungo de ser, que os Mangue boys conseguiram atrair para a cena Mangue uma estética mercadológica, ou seja, com grifes interessadas na moda Mangue, os Caranguejos com cérebro (salvo as devidas proporções) conseguiram sair da lama e alcançar a fama. Camisas, Tênis e até cadeiras estão entre os objetos criados a partir da temática movimento Mangue Beat.
 

Mangue Bit: Outras Artes...


O movimento Mangue abriu suas “fronteiras” e não se limitou apenas ao campo da música, também influenciou as artes plásticas e o cinema local. Para isso se utilizou tanto de espaços privados como recursos públicos. Havia uma gama de possibilidades para se trabalhar com a temática Mangue, os Mangue boys abriram o “leque da criatividade” e viram que algo de novo poderia brotar do pantanoso mangue, além de miséria social como mocambos e palafitas, havia também muita fertilidade biológica e cultural, era essa área que deveria ser explorada, não no sentido de sugar, mas sim de ver e ser vista, de notar e ser notada. Vale salientar, entretanto que o Mangue Beat brasileiro (década de 90) não tem nada a ver com a Geração Beat inglesa dos anos 50. A Geração Beat é um movimento literário surgido no Reino Unido e não exerce influência notável ao Mangue Beat

Sendo o movimento Mangue espécie de “quilombo cultural”, não demorou muito para inúmeras variações artísticas se inspirarem em sua filosofia e se utilizarem de seus signos. Se musicalmente o Mangue Beat saiu do centro cultural Darué Malungo (Companheiro de guerra no dialeto Ororubá), o próprio centro e algumas comunidades periféricas como Chão de Estrelas, Peixinhos e Auto José do Pinho se “associaram” ao movimento para assim obter o objetivo a ser alcançado, tirar os jovens do ócio oferecendo-lhes atividades profissionalizantes, o que é de suma importância para comunidades que praticamente vivem sem nenhuma perspectiva de vida, onde a criminalidade “bate a porta” dia-a-dia. Dados anteriores mostrados por Josué de Castro no livro Geografia da Fome - 1946, falavam que a cidade do Recife tinha 700.000 habitantes, dos quais 230.000 viviam em mocambos (moradias precárias). Décadas depois, o censo de 2000, aponta que, dos 1.422.905 habitantes, cerca de 501.000 vivem em condições de pobreza, ou seja, 35,2% da população local. A proposta pensada pelos mentores do Mangue Beat era diminuir o ócio cultural da cidade e consequentemente fazer com que os índices de pobreza e criminalidade caíssem. Porém a triste realidade é que em relação à melhoria no campo econômico pouco se alcançou, entretanto os índices de criminalidade caíram. Existem dois motivos para explicar tal fato, o primeiro é pensar que dentro das suas limitações a Cena Mangue conseguiu chamar a atenção dos jovens para produções culturais, desviando-os assim da criminalidade, ou apenas coincidência, pois o Recife está menos violento e apesar de ser a capital nordestina mais violenta, não é mais a quarta pior cidade do mundo para se viver. Uma coisa é fato, os jovens que se influenciaram pela filosofia ‘Crustaceana’ ao invés de seguirem uma vida de crime, sentiram o estimulo fértil da lama, resolveram sair do mangue e ganhar o asfalto! Muitos escolheram a musica Mangue para (tentar) ascender economicamente e também expressar suas angustias e seus sonhos. Era “Pernambuco falando para o mundo” (expressão muito usada nesse período). O Mangue Beat difundia a idéia de que, para conhecer a cultura local era preciso se comunicar com as demais culturas e para isso se fazia necessário instalar (na lama do mangue) uma antena, como disse Fred 04 “...de baixa tecnologia e longo alcance” para só assim captar o “bom” vindo de fora e mesclar com o “bom” da Manguetown (Recife). Como cantou Chico Science, a música tinha que mudar, mas com “Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão” (Mateus Enter – Afrociberdelia, 1996).

O Movimento Mangue Bit não se limitou a música, foi além e fez se notar praticamente em todas as formas de expressões artísticas. Me deterei porém em minha analise, além da música, ao cinema, teatro e moda. Como exemplo de cinema Mangue, o chamado ‘Mangue Movie’, subdivisão do gênero cinematográfico ‘Árido Movie’, temos os películas Baile Perfumado que aborda o tema o cangaço e o banditismo da década de 40 exercido por Lampião e seu bando. O filme tem trilha sonora das bandas Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), Mundo Livre S/A (MLSA) e Mestre Ambrósio. As canções interpretadas por CSNZ foram: Angicos, uma versão original e dois remixes, Salustiano Song e Sangue de Bairro, essas com seus fonogramas originais e duas versões. Enquanto a MLSA interpretou Harde Tango, Baile perfumado, tenente Lindalvo e a banda Mestre Ambrósio ficou com Baile Catingoso, Mamede, Chico Rural, Bejaab e Fulô do Junco, esta ultima de domínio publico. Além da participação nas gravações dos integrantes da banda Mestre Ambrósio, o filme teve como produtores musicais Chico Science, Fred 04, Lucio Maia, Siba e Paulo Rafael. Com participação em algumas canções de Stela Campos e Alceu Valença. O filme foi o primeiro longa do gênero. Logo depois veio “Amarelo Manga”. Esse, mais urbano e abordava temas da classe baixa recifense. Com trilhas da Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Otto. Nação Zumbi interpreta Acordando, a entidade, Defunkt, Dollywood, Kanibal ...E o boi deitou, Nebuloza, o fim, Gafieira na Avenida e o fonograma Tempo Amarelo. Mundo livre, a canção Lígia e Otto a canção tema do filme; Amarelo Manga. Com produção musical de Lucio Maia e Joerge du Peixe e participações de B. Negão e Apollo9, a trilha se destaca. Além de Baile Perfumado e Amarelo Manga, ao que se refere trilha sonora Mangue Beat, podemos destacar os longas: A Maquina, Narradores de Javé, O Homem que desafiou o Diabo, Árido Movie, Besouro e Deus é Brasileiro. Em alguns desses filmes, cantores ou bandas Mangues interpretam papeis dentro da trama. Há ainda os curtas Maracatus, Maracatus (Marcelo Gomes), That’s A Lero-Lero (Stepple e Lirio Ferreira) Texas Hotel (Cláudio Assis), A Perna Cabiluda (Beto Normal, Gil Vicente, Marcelo Gomes e João Junior), O Mundo é uma Cabeça (Bidu Queiroz e Cláudio Barroso). Como podemos notar, a produção audiovisual pós Mangue iam de vento em poupa. Certa vez o cineasta Walter Sales Junior ressaltou que “O Mangue Beat foi à coisa mais importante que aconteceu na música popular brasileira”. E pelo o que vimos até agora, não só para a música em si, como também para várias outras expressões artísticas.

No campo teatral, como destaque Mangue temos três espetáculos: O Príncipe das marés, com figurino de Eduardo Ferreira. O espetáculo Pata aqui, pata acolá  (2000), adaptado do livro de Edmilson Lima por Sidney Cruz e dirigido por José Manoel, tem como tema uma Família de caranguejos e seus conflitos com o bicho homem. Por ultimo destaco o espetáculo de dança Zambu, com coreografias de Sonalye e Mônica Lira. Na moda temos em destaque o estilista Eduardo Ferreira e a grife Período Fértil, dos artistas Clezinho Santos e Maria Lima. Não deixando de citar os fotógrafos Mangue Fred Jordão, Roberta Guimarães e Breno Laprovitera, e, o escultor Evêncio Vasconcelos.

Mangue Beat: A Filosofia Crustaceana...

As doses que beberam de regionalismo, os mangue boys beberam o equivalente da world music. Baseados principalmente na filosofia punk do Do it yourself  (faça você mesmo), originalmente criada por Malcolm Maclaren (musico, compositor e empresário da banda Sex Pistols). A atitude punk representou um avanço ideológico para aqueles jovens da periferia, pois, seguindo a filosofia punk inglesa, eles poderiam fazer música de qualidade com poucos recursos. Bastavam alguns requisitos básicos como instrumentos baratos, criatividade e atitude. Foi com o slogan do “faça você mesmo” que os mangue boys saíram da lama e fincaram suas antenas para fora do Brasil.

Se de fora, os futuros mangue boys se inspiravam no punk inglês e no funk americano. Aqui no Brasil a banda que mais contribuiu para a formação musical de Chico Science, Fred 04 e Companhia foram os Mutantes com seu rock psicodélico e debochado (atitude incomum em meados dos anos 70 e começo da década de 80).

É seguindo os passos de Jimi Hendrix e baseado no rock’n roll setentista que Lúcio Maia (guitarrista da Nação Zumbi) faz seus arranjos até hoje, usando efeitos de pedais distorcidos ao extremo. Porém, o representante maior do rock’n roll entre os mangue boys, sem duvida é Fred 04. Antes de fundar a Mundo Livre S/A, integrou bandas punks como Trapaça, Serviço Sujo e Câmbio Negro HC11.

“A gente agiu à maneira de Malcom Maclarem. Vimos que ali havia elementos para criarmos uma cena particular. Então bolamos gírias, visual, manifesto. Quase todas as musicas que fizemos depois disto continuam palavras extraídas dos manifestos” (Fred 04 apud TELES, 2000: 274).

Fred é ex-punk e apesar de predominar em suas canções o ritmo “samba”, em suas letras podemos notar que as mesmas contém uma linhagem punk, abordando temas sociais e de caráter oposicionista, ou seja, Fred 04 é um sambista compositor de letras punks, e é essa mistura que o coloca na cena Mangue.

Jorge Cabeleira e Devotos do Ódio (bandas etiquetadas na cena Mangue da época) tinham um caráter mais agressivo musicalmente falando. A Devotos do Ódio tocava punk rock enquanto a Jorge Cabeleira tocava uma espécie de rock e baião conhecido como “rock regional”.

Seja punk inglês, funk americano ou até rock nacional, os mentores do movimento Mangue Beat não se inspiraram só nos ritmos regionais como maracatu, coco, ciranda e baião, mas também captaram o punk e o rock’n roll. Sem essa mistura de influencias, o Mangue Beat talvez nem existisse, pois, é característica principal da cena o hibridismo cultural.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Mangue Beat: O Manifesto...

Para uma maior legitimação da cena, foi publicado em alguns jornais o Manifesto Mangue, posteriormente impresso no CD de estréia da banda Chico Science & Nação Zumbi (Da Lama ao Caos, 1994). O manifesto “Caranguejos com Cérebro” é dividido em três partes e tem como temas o ecossistema manguezal, a geografia e o crescimento destrutivo em pró do progresso da cidade do Recife e por ultimo a cena Mangue, o perfil dos Mangueboys e Manguegilrs e o que era preciso fazer para estimular a cultura local. Abordando ainda o crescimento histórico desordenado da cidade do Recife, o aterramento dos mangues, rios, lagos, lagoas e estuários. Além das mudanças geográficas local, abordava ainda às condições sociais da população e o “resgate” das tradições culturais que estavam quase esquecidas. A inspiração do manifesto veio das obras Geografia da Fome (1946) e Homens Caranguejos (1967), ambas escritas pelo Sociólogo e geógrafo Josué de Castro, as obras foram de fundamental importância na metáfora do “Homem-Caranguejo”, onde a vida dos habitantes das margens do mangue da cidade de Recife é comparada com a vida de um caranguejo. No manifesto há até uma nomenclatura para tal ser, denominado de Chamagnathus Granulatus Sapiens. O documento se torna bem completo ao frisar questões históricas, geográficas, sociais e culturais.


( Mangue: O Conceito )


Estuário: parte terminal de um rio ou lagoa, em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelo movimento das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. Os estuários fornecem área de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas; inimigos das donas-de-casa, para os cientistas, os mangues são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.


( Manguetown: A Cidade)


A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade Maurícia passou a crescer desordenadamente as custas do aterramento indiscriminado e destruição dos seus manguezais. Uma cínica noção de progresso, que elevou a cidade ao posto de metrópole do nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem no início dos anos 60. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da metrópole, só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.


( Mangue: A Cena)


Emergência! Um choque rápido, ou Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruir suas veias. O modo mais rápido também, de enfartar e esvaziar a alma de uma cidade como Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife. Os Mangueboys e Manguegirls são indivíduos interessados em: Quadrinhos, TV interativa, antipsiquiatria, artismo, música de rua, sexo não virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência.


Vimos então, que o manifesto se faz presente no sentido literal da palavra, pois, expõe os problemas (o caos) e propõe melhorias. Tais melhorias seria a não poluição ambiental, poluição essa que degrada de maneira irreversível o ecossistema natural. Porém no parágrafo final, o manifesto se detém a explicar o perfil de um Mangue boy ou uma Mangue Girl, indivíduos preocupados com a poluição em nome do progresso.

Mangue Beat:: O Movimento...

 A primeira vez que o nome Mangue Bit apareceu foi em 01/06/91 no Jornal do Comércio, na matéria o ritmo era definido por Science como: “[...] a mistura de samba-reggae, rap, ragafuffin e embolada”. Em 1992 uma espécie de coletânea é lançada, o disco continha músicas demo (demonstrativas) das bandas Chico Science & Nação zumbi e Mundo Livre S/A (a MLSA tinha a frente o ex-punk e jornalista Fred Rodrigues Montenegro, mas conhecido como Fred 04).

Em 1993 a CSNZ faz uma mini Turner com três apresentações nas cidades de Belo Horizonte (casa de show Drosophilia) e em São Paulo, show para 700 pessoas no espaço Aeroanta. São Paulo e Belo Horizonte costumavam revelar grandes talentos musicais e era pela região sudeste que girava a efervescência do circuito musical nacional. Em um destes shows estavam alguns artistas e produtores artísticos já consagrados do cenário nacional, como Jorge Davidson (Warner), Pena Schimidt e os ídolos de Chico, Edgar Scandurra e Nazi, ambos da banda IRA. Apesar das 48hs de viagem, dentro de um ônibus sem o menor conforto, a 1ª “Mangue Tour” (turnê Mangue) foi sucesso de público e críticas na mídia. Como jogada de marketing os “Mangue-musicos” em suas apresentações ofereciam o “kit Mangue”, que consistia em; camiseta, pau-de-índio (bebida composta de raízes, ervas e cascas), um chip colar, fita demo e um glossário de gírias. O Brasil começava a descobrir o novo som, o som que vinha dos mangues do Nordeste. Não veio com sangue e lagrimas, mas com muito suor e esforço. Estava assim se expandindo o Mangue Beat, uma cooperativa contra o marasmo (contra a homogeização da produção artística vinculada pela grande mídia), ou seja, estava ganhando afirmação (dentro dos grandes meios de comunicação) um movimento alternativo que fez com que o jovem da periferia tivesse sua vez. Segundo Hermano Vianna: “A cena Mangue deu voz a quem não tinha como se expressar em um nordeste calejado dos mandos (ou desmandos) da tradição autoritária de origem agrária”. Era o começo de novos tempos, o fim do analógico e o inicio do digital. Estava acontecendo na música brasileira o que na França de 1922 aconteceu com a história através da escola dos Annales. A mudança estava ali e era notável, faltava uma maior lapidação daquele diamante bruto chamado Mangue Beat.

O tempo ia passando e o Mangue Beat se consolidando. Em 1993 o jornalista José Teles escreve um artigo chamado: Recife inventa o Mangue-Beat. Lenine lança o disco Olho de Peixe, sucesso de critica por misturar elementos rítmicos pop’s e locais. Em Março de 1993 a banda Chico Science & Nação Zumbi ganha projeção nacional ao aparecer na revista Bizz. Em 25 de Abril do mesmo ano, estréia o festival Abril Pro Rock, organizado por Paulo André (produtor e futuro empresário da banda CSNZ).  Ainda em 93, a MTV elabora um especial para apresentar o novo ritmo, com o titulo: Especial CSNZ, o programa deu retorno a emissora em forma de audiência e aos Malungos em forma de convite para se apresentarem no festival Wollywood Rock, transmitido pela mesma emissora. O grupo fez seu show poucas horas antes da banda Nirvana (a atração mais esperada da noite). Daí então, as aparições na mídia se tornaram freqüentes. O renomado produtor musical Carlos Eduardo Miranda, na época jornalista da revista Bizz, visita Recife e elogia a cena Mangue. Fato que fez com que o mercado musical se voltasse para a cidade, atraindo assim alguns estúdios e a rádio Rock 89 FM por exemplo.

Na TV Cultura, participaram do Especial Mangue Beat (Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A), como também dos programas Fanzine e Metrópole. Já no SBT, participaram do Programa Livre e na Globo do Domingão do Faustão. A partir daí vieram convites para festivais como o Festin Bahia, etc. No mês de Agosto ocorre um fato marcante, fazem uma visita ao Recife, vindo de São Paulo, toda diretoria e a presidência da gravadora Sony Music, visita feita no intuito de assistir a um show da Banda Chico Science & Nação Zumbi, tudo estava se encaminhando para a contratação da banda, e foi isso que aconteceu, assinaram contrato com o selo Caos e a gravadora Sony, Liminha foi o produtor do disco e Paulo André se torna empresário da banda. Nessa mesma época, Mundo Livre S/A toca no III Festival de Inverno de Garanhuns. Jorge Ben os convida para participar do seu show com publico estimado em 3.500 pessoas. Pouco tempo depois, no dia 17 de Janeiro de 1994, a MLSA assina contrato com o selo Banguela (posteriormente Excelente Discos) e a gravadora Warner Music. Com a efervescência batendo a porta da Veneza Brasileira, Fred 04 chegou a afirmar na época: “Recife é muito mais rica em música do que Seattle”, alusão feita por, Seattle até então ser considerada (pela mídia mundial) como berço criativo alternativo, sendo o movimento grunge seu nicho. Segundo relatos de amigos, Chico sempre dizia; “Faça o que você quer que dá certo” e foi graças ao empenho de artistas como o próprio Chico Science, Fred 04, Jorge Du Peixe, Lucio Maia, Renato Lins, Dokctor Mabuse e Elder Aragão (Dj Dolores) que o Mangue Beat se tornaria um gênero musical conhecido não só no país como pelo mundo a fora.

Em Agosto de 1994 é realizado o Rec Beat, festival proposto para divulgar a cena Mangue. É dentro do contexto de difusão musical que, praticamente uma “invasão nordestina” acontece no sudeste, com 12 bandas Mangues se apresentando durante 3 dias no Aeroanta-SP. Sucesso de publico e critica. Os caminhos estavam abertos e o gênero se tornaria conhecido e apreciado pelo Brasil a fora... Na primeira turnê internacional Chico Science & Nação Zumbi dividiram o palco com Gilberto Gil, se apresentando em alguns países da Europa. Nos Estados Unidos da América se apresentaram no festival Summerstage realizado no Central Park em New York, os Malungos em nota, receberam elogios do The New York times. Já na segunda turnê, participaram as Bandas Mundo Livre S/A e a Banda de Pífanos de Caruaru. A segunda turnê consistiu em cinco apresentações nos E.U.A e Europa.

 No ano de 1995, estréia na rádio Caetés FM o programa Mangue Beat. Em 1996, com a cena já consolidada, as bandas Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi lançam respectivamente Guetando a Ôia e Afrociberdelia. O segundo disco da banda CSNZ veio mais moderno, com pitadas de hip hop, misturando assim elementos tribais e high-tech. O leque de possibilidades aumentava, assim como o conceito Mangue, acarretando assim no surgimento de novas bandas, as bandas Mangues se destacavam cada vez mais e no ano de 1997 as bandas Jorge Cabeleira e Mestre Ambrósio assinam com a Sony e gravam os discos O Dia em que Seremos Todos Inúteis e Fuá na Casa de Cabral. produzido por Lenine. Após dez anos de “estrada” a independente Devotos do Ódio (hoje Devotos) grava pela BMG (Plug) o disco Agora Tá Valendo.

O disco Afrociberdelia, tem inicio com a música Mateus Enter, uma espécie de apresentação inicial, pois o Mateus é um dos personagens do cavalo marinho. Ele chega para brincar. Na musica Mateus Enter, o Mateus é mais tecnológico, o “enter” (tecla de computador) tem relação com sua entrada na brincadeira, anunciando assim a chegada (entrada) da banda Chico Science & Nação Zumbi. Com esse simples gesto, Chico Science se apropria de um dos signos de identidade folclórica local, ou seja, se utiliza de uma estética já formada para fomentar outra utilizando o tradicional e o tecnológico.

Saia então do Recife, esgoto pós-industrial dos anos 90, a musicalidade que mais tarde iria ser considerada por críticos do ramo tão importante quanto a Tropicália foi na história do Brasil. Segundo o jornalista Lulu Carabina, o Mangue Beat é uma mistura de cultura popular, história e modernidade. Podemos também enquadrar o Mangue Beat no conceito de Peter Burke e analisar o Mangue Beat como uma cultura de hibridismo, não esquecendo porém que, foi (e é) produto e produtor das condições sócio-culturais do seu tempo, classifico assim como “Cultura Glocal”, ou seja, ao mesmo tempo o gênero incorpora em suas praticas e signos globais, porém, também se utiliza das lendas e musicalidade local para formar uma espécie de “salada sonora”. Sendo assim os “Mangueboys” (indivíduos que seguem a temática Mangue) transitavam entre as dualidades tradição/modernidade, centro/periferia, nacionalismo/cosmopolitismo, etc. Não esquecendo claro, da questão social, pois o discurso Mangue propiciou uma consciência político-social, transformando assim o campo cultural em um agente problematizador, questionador e explicador, porém sem ligação com os mecanismos políticos institucionais, foi um movimento feito por civis para civis. Usaram como embasamento teórico principalmente as obras de João Cabral de Melo Neto e Josué de Castro, obras consideradas verdadeiros clássicos regionais nos estudos sociais de caráter político-humanista. Como metáfora maior, a cena tem a temática mangue, ecossistema esse que faz parte da geografia local. Entre os vários exemplos metafóricos que o movimento Mangue Beat utilizou, podemos citar o Homem Caranguejo, metáfora iniciada nas obras de Josué de Castro e retomada para a cena Mangue. Na “filosofia Crustaciana” o caranguejo é o personagem principal, algumas vezes se metamorfoseando com o Homos Sapiens.

Tanto nas obras de Josué como no movimento Mangue, podemos notar a presença do homem-caranguejo e do homem-gabiru. Para Josué de Castro o Homem Gabiru é um sujeito mau e aproveitador, para o Mangue Beat o Homem Gabiru é uma pessoa omissa e socialmente marginalizada. No conceito do Mangue Beat, os homens caranguejos são humanóides inspirados em ficção cientifica e histórias em quadrinho. Os homens caranguejos são indivíduos que sofreram mutação após tomarem cerveja feita com água (contaminada) do mangue. No encarte do disco de estréia da banda Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao Caos – 1994, contém uma história em quadrinhos explicando a metamorfose. Para Josué de Castro, o Homem Caranguejo é o próprio sujeito que vive nas palafitas, nos mangues catando crustáceos para sua sobrevivência. Apesar dos mentores da cena Mangue, tratarem Josué de Castro como um “guru” intelectual, como podemos notar, há pequenas divergências nos conceitos de Homem Gabiru e Homem Caranguejo.

Nos anos 90 o processo de redemocratização no Brasil foi orientado pelo discurso da redução de gastos [...]” (Moisés, 2001) e quem mais sofreu com isso foram os incentivos culturais, é remando contra a maré que a cena Mangue surge, fazendo com que a periferia recifense trocasse as tristes paginas policiais pelas paginas dos cadernos culturais. Ganhando voz (mesmo que por muitas vezes abafada) e denunciando a exclusão social, a violência urbana, a degradação do ecossistema manguezal, a fome e a pobreza, problemas comuns em países subdesenvolvidos, outrora chamados “terceiro mundo”. O Mangue Beat foi o movimento pop mais importante dos anos 90, antes dele as bandas brasileiras seguiam a tendência produzida fora. O Mangue beat instigou os artistas a criarem um pop brasileiro. E, pensar que tudo começou meio que sem pretensão e que freqüentando lugares como a praça da independência, mas conhecida como Praça do Diário, por se encontrar ao lado do jornal mais antigo em circulação das Américas (Diário de Pernambuco), onde os mangue boys tinham contato com a cultura popular, a exemplo podemos citar os repentistas Pinto e Rouxinol e emboladores como Siriema e tantos outros, que os Caranguejos com cérebro despertaram para a cultura popular. Mas também poderia ter sido na praia de Del Cifre, lugar muito freqüentado pelos Malungos ou no apartamento da irmã Goretti. Mas quem garante que também não foi?

“Assim como os tropicalistas pegaram o baião que era esnobado na época da bossa nova para mostrar o que é brasileiro. A turma do Mangue Beat nos anos 90 pegaram os ritmos típicos de Pernambuco; ciranda, coco e embolada e misturaram com o que tem de mais atual como rap e rock pesado para fazer uma coisa diferente. Uma síntese do que seria o muito nacional com o que seria o muito internacional.” (CALADO, 2008).

Havia ainda projetos paralelos que devido à morte de Chico Science, não foram tocados em frente. Por exemplo; em 1997 estrearia uma novela pela internet chamada Os 12 Caranguejos do Apocalipse, onde os personagens que combatiam a massificação cultural e dominavam o campo nas pesquisas da expansão química da mente eram Caranguejos. Além da futura trilha do filme de Kátia Mesel: Recife de Dentro para Fora, baseado em textos do poeta João Cabral de Melo Neto. Na música, Chico Science além das parcerias feitas com Arnaldo Antunes, Fernanda Abreu e Syung, havia a intenção por parte de Chico de consolidar parcerias com Herbert Viana (líder dos Paralamas do Sucesso) e com Max Cavalera (na época líder do Sepultura), Chico pretendia montar um projeto paralelo chamado Sebosa Soul. As bandas Nação Zumbi e Mundo Livre tinham um projeto não executado chamado Orquestra Manguefônica, consistia na fusão de todos os integrantes em pró de uma única banda, sendo as músicas executadas com arranjos diferenciados das originais. O que anos depois da morte de Chico se consolidaria. Herbert Viana musicou uma letra inédita de Chico Science chamada Scream Poetry, além de regravar no acústico MTV Paralamas do Sucesso, em 1999 a música Manguetown.