A primeira vez que o nome Mangue Bit apareceu foi em 01/06/91 no Jornal do Comércio, na matéria o ritmo era definido por Science como: “[...] a mistura de samba-reggae, rap, ragafuffin e embolada”. Em 1992 uma espécie de coletânea é lançada, o disco continha músicas demo (demonstrativas) das bandas Chico Science & Nação zumbi e Mundo Livre S/A (a MLSA tinha a frente o ex-punk e jornalista Fred Rodrigues Montenegro, mas conhecido como Fred 04).
Em 1993 a CSNZ faz uma mini Turner com três apresentações nas cidades de Belo Horizonte (casa de show Drosophilia) e em São Paulo, show para 700 pessoas no espaço Aeroanta. São Paulo e Belo Horizonte costumavam revelar grandes talentos musicais e era pela região sudeste que girava a efervescência do circuito musical nacional. Em um destes shows estavam alguns artistas e produtores artísticos já consagrados do cenário nacional, como Jorge Davidson (Warner), Pena Schimidt e os ídolos de Chico, Edgar Scandurra e Nazi, ambos da banda IRA. Apesar das 48hs de viagem, dentro de um ônibus sem o menor conforto, a 1ª “Mangue Tour” (turnê Mangue) foi sucesso de público e críticas na mídia. Como jogada de marketing os “Mangue-musicos” em suas apresentações ofereciam o “kit Mangue”, que consistia em; camiseta, pau-de-índio (bebida composta de raízes, ervas e cascas), um chip colar, fita demo e um glossário de gírias. O Brasil começava a descobrir o novo som, o som que vinha dos mangues do Nordeste. Não veio com sangue e lagrimas, mas com muito suor e esforço. Estava assim se expandindo o Mangue Beat, uma cooperativa contra o marasmo (contra a homogeização da produção artística vinculada pela grande mídia), ou seja, estava ganhando afirmação (dentro dos grandes meios de comunicação) um movimento alternativo que fez com que o jovem da periferia tivesse sua vez. Segundo Hermano Vianna: “A cena Mangue deu voz a quem não tinha como se expressar em um nordeste calejado dos mandos (ou desmandos) da tradição autoritária de origem agrária”. Era o começo de novos tempos, o fim do analógico e o inicio do digital. Estava acontecendo na música brasileira o que na França de 1922 aconteceu com a história através da escola dos Annales. A mudança estava ali e era notável, faltava uma maior lapidação daquele diamante bruto chamado Mangue Beat.
O tempo ia passando e o Mangue Beat se consolidando. Em 1993 o jornalista José Teles escreve um artigo chamado: Recife inventa o Mangue-Beat. Lenine lança o disco Olho de Peixe, sucesso de critica por misturar elementos rítmicos pop’s e locais. Em Março de 1993 a banda Chico Science & Nação Zumbi ganha projeção nacional ao aparecer na revista Bizz. Em 25 de Abril do mesmo ano, estréia o festival Abril Pro Rock, organizado por Paulo André (produtor e futuro empresário da banda CSNZ). Ainda em 93, a MTV elabora um especial para apresentar o novo ritmo, com o titulo: Especial CSNZ, o programa deu retorno a emissora em forma de audiência e aos Malungos em forma de convite para se apresentarem no festival Wollywood Rock, transmitido pela mesma emissora. O grupo fez seu show poucas horas antes da banda Nirvana (a atração mais esperada da noite). Daí então, as aparições na mídia se tornaram freqüentes. O renomado produtor musical Carlos Eduardo Miranda, na época jornalista da revista Bizz, visita Recife e elogia a cena Mangue. Fato que fez com que o mercado musical se voltasse para a cidade, atraindo assim alguns estúdios e a rádio Rock 89 FM por exemplo.
Na TV Cultura, participaram do Especial Mangue Beat (Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A), como também dos programas Fanzine e Metrópole. Já no SBT, participaram do Programa Livre e na Globo do Domingão do Faustão. A partir daí vieram convites para festivais como o Festin Bahia, etc. No mês de Agosto ocorre um fato marcante, fazem uma visita ao Recife, vindo de São Paulo, toda diretoria e a presidência da gravadora Sony Music, visita feita no intuito de assistir a um show da Banda Chico Science & Nação Zumbi, tudo estava se encaminhando para a contratação da banda, e foi isso que aconteceu, assinaram contrato com o selo Caos e a gravadora Sony, Liminha foi o produtor do disco e Paulo André se torna empresário da banda. Nessa mesma época, Mundo Livre S/A toca no III Festival de Inverno de Garanhuns. Jorge Ben os convida para participar do seu show com publico estimado em 3.500 pessoas. Pouco tempo depois, no dia 17 de Janeiro de 1994, a MLSA assina contrato com o selo Banguela (posteriormente Excelente Discos) e a gravadora Warner Music. Com a efervescência batendo a porta da Veneza Brasileira, Fred 04 chegou a afirmar na época: “Recife é muito mais rica em música do que Seattle”, alusão feita por, Seattle até então ser considerada (pela mídia mundial) como berço criativo alternativo, sendo o movimento grunge seu nicho. Segundo relatos de amigos, Chico sempre dizia; “Faça o que você quer que dá certo” e foi graças ao empenho de artistas como o próprio Chico Science, Fred 04, Jorge Du Peixe, Lucio Maia, Renato Lins, Dokctor Mabuse e Elder Aragão (Dj Dolores) que o Mangue Beat se tornaria um gênero musical conhecido não só no país como pelo mundo a fora.
Em Agosto de 1994 é realizado o Rec Beat, festival proposto para divulgar a cena Mangue. É dentro do contexto de difusão musical que, praticamente uma “invasão nordestina” acontece no sudeste, com 12 bandas Mangues se apresentando durante 3 dias no Aeroanta-SP. Sucesso de publico e critica. Os caminhos estavam abertos e o gênero se tornaria conhecido e apreciado pelo Brasil a fora... Na primeira turnê internacional Chico Science & Nação Zumbi dividiram o palco com Gilberto Gil, se apresentando em alguns países da Europa. Nos Estados Unidos da América se apresentaram no festival Summerstage realizado no Central Park em New York, os Malungos em nota, receberam elogios do The New York times. Já na segunda turnê, participaram as Bandas Mundo Livre S/A e a Banda de Pífanos de Caruaru. A segunda turnê consistiu em cinco apresentações nos E.U.A e Europa.
No ano de 1995, estréia na rádio Caetés FM o programa Mangue Beat. Em 1996, com a cena já consolidada, as bandas Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi lançam respectivamente Guetando a Ôia e Afrociberdelia. O segundo disco da banda CSNZ veio mais moderno, com pitadas de hip hop, misturando assim elementos tribais e high-tech. O leque de possibilidades aumentava, assim como o conceito Mangue, acarretando assim no surgimento de novas bandas, as bandas Mangues se destacavam cada vez mais e no ano de 1997 as bandas Jorge Cabeleira e Mestre Ambrósio assinam com a Sony e gravam os discos O Dia em que Seremos Todos Inúteis e Fuá na Casa de Cabral. produzido por Lenine. Após dez anos de “estrada” a independente Devotos do Ódio (hoje Devotos) grava pela BMG (Plug) o disco Agora Tá Valendo.
O disco Afrociberdelia, tem inicio com a música Mateus Enter, uma espécie de apresentação inicial, pois o Mateus é um dos personagens do cavalo marinho. Ele chega para brincar. Na musica Mateus Enter, o Mateus é mais tecnológico, o “enter” (tecla de computador) tem relação com sua entrada na brincadeira, anunciando assim a chegada (entrada) da banda Chico Science & Nação Zumbi. Com esse simples gesto, Chico Science se apropria de um dos signos de identidade folclórica local, ou seja, se utiliza de uma estética já formada para fomentar outra utilizando o tradicional e o tecnológico.
Saia então do Recife, esgoto pós-industrial dos anos 90, a musicalidade que mais tarde iria ser considerada por críticos do ramo tão importante quanto a Tropicália foi na história do Brasil. Segundo o jornalista Lulu Carabina, o Mangue Beat é uma mistura de cultura popular, história e modernidade. Podemos também enquadrar o Mangue Beat no conceito de Peter Burke e analisar o Mangue Beat como uma cultura de hibridismo, não esquecendo porém que, foi (e é) produto e produtor das condições sócio-culturais do seu tempo, classifico assim como “Cultura Glocal”, ou seja, ao mesmo tempo o gênero incorpora em suas praticas e signos globais, porém, também se utiliza das lendas e musicalidade local para formar uma espécie de “salada sonora”. Sendo assim os “Mangueboys” (indivíduos que seguem a temática Mangue) transitavam entre as dualidades tradição/modernidade, centro/periferia, nacionalismo/cosmopolitismo, etc. Não esquecendo claro, da questão social, pois o discurso Mangue propiciou uma consciência político-social, transformando assim o campo cultural em um agente problematizador, questionador e explicador, porém sem ligação com os mecanismos políticos institucionais, foi um movimento feito por civis para civis. Usaram como embasamento teórico principalmente as obras de João Cabral de Melo Neto e Josué de Castro, obras consideradas verdadeiros clássicos regionais nos estudos sociais de caráter político-humanista. Como metáfora maior, a cena tem a temática mangue, ecossistema esse que faz parte da geografia local. Entre os vários exemplos metafóricos que o movimento Mangue Beat utilizou, podemos citar o Homem Caranguejo, metáfora iniciada nas obras de Josué de Castro e retomada para a cena Mangue. Na “filosofia Crustaciana” o caranguejo é o personagem principal, algumas vezes se metamorfoseando com o Homos Sapiens.
Tanto nas obras de Josué como no movimento Mangue, podemos notar a presença do homem-caranguejo e do homem-gabiru. Para Josué de Castro o Homem Gabiru é um sujeito mau e aproveitador, para o Mangue Beat o Homem Gabiru é uma pessoa omissa e socialmente marginalizada. No conceito do Mangue Beat, os homens caranguejos são humanóides inspirados em ficção cientifica e histórias em quadrinho. Os homens caranguejos são indivíduos que sofreram mutação após tomarem cerveja feita com água (contaminada) do mangue. No encarte do disco de estréia da banda Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao Caos – 1994, contém uma história em quadrinhos explicando a metamorfose. Para Josué de Castro, o Homem Caranguejo é o próprio sujeito que vive nas palafitas, nos mangues catando crustáceos para sua sobrevivência. Apesar dos mentores da cena Mangue, tratarem Josué de Castro como um “guru” intelectual, como podemos notar, há pequenas divergências nos conceitos de Homem Gabiru e Homem Caranguejo.
Nos anos 90 o processo de redemocratização no Brasil foi orientado pelo discurso da redução de gastos [...]” (Moisés, 2001) e quem mais sofreu com isso foram os incentivos culturais, é remando contra a maré que a cena Mangue surge, fazendo com que a periferia recifense trocasse as tristes paginas policiais pelas paginas dos cadernos culturais. Ganhando voz (mesmo que por muitas vezes abafada) e denunciando a exclusão social, a violência urbana, a degradação do ecossistema manguezal, a fome e a pobreza, problemas comuns em países subdesenvolvidos, outrora chamados “terceiro mundo”. O Mangue Beat foi o movimento pop mais importante dos anos 90, antes dele as bandas brasileiras seguiam a tendência produzida fora. O Mangue beat instigou os artistas a criarem um pop brasileiro. E, pensar que tudo começou meio que sem pretensão e que freqüentando lugares como a praça da independência, mas conhecida como Praça do Diário, por se encontrar ao lado do jornal mais antigo em circulação das Américas (Diário de Pernambuco), onde os mangue boys tinham contato com a cultura popular, a exemplo podemos citar os repentistas Pinto e Rouxinol e emboladores como Siriema e tantos outros, que os Caranguejos com cérebro despertaram para a cultura popular. Mas também poderia ter sido na praia de Del Cifre, lugar muito freqüentado pelos Malungos ou no apartamento da irmã Goretti. Mas quem garante que também não foi?
“Assim como os tropicalistas pegaram o baião que era esnobado na época da bossa nova para mostrar o que é brasileiro. A turma do Mangue Beat nos anos 90 pegaram os ritmos típicos de Pernambuco; ciranda, coco e embolada e misturaram com o que tem de mais atual como rap e rock pesado para fazer uma coisa diferente. Uma síntese do que seria o muito nacional com o que seria o muito internacional.” (CALADO, 2008).
Havia ainda projetos paralelos que devido à morte de Chico Science, não foram tocados em frente. Por exemplo; em 1997 estrearia uma novela pela internet chamada Os 12 Caranguejos do Apocalipse, onde os personagens que combatiam a massificação cultural e dominavam o campo nas pesquisas da expansão química da mente eram Caranguejos. Além da futura trilha do filme de Kátia Mesel: Recife de Dentro para Fora, baseado em textos do poeta João Cabral de Melo Neto. Na música, Chico Science além das parcerias feitas com Arnaldo Antunes, Fernanda Abreu e Syung, havia a intenção por parte de Chico de consolidar parcerias com Herbert Viana (líder dos Paralamas do Sucesso) e com Max Cavalera (na época líder do Sepultura), Chico pretendia montar um projeto paralelo chamado Sebosa Soul. As bandas Nação Zumbi e Mundo Livre tinham um projeto não executado chamado Orquestra Manguefônica, consistia na fusão de todos os integrantes em pró de uma única banda, sendo as músicas executadas com arranjos diferenciados das originais. O que anos depois da morte de Chico se consolidaria. Herbert Viana musicou uma letra inédita de Chico Science chamada Scream Poetry, além de regravar no acústico MTV Paralamas do Sucesso, em 1999 a música Manguetown.